The Disturbing Dazzle of Digital Friendships: A Viewpoint from the Nicomachean Ethics

 

O deslumbramento inquietante das amizades digitais: Um ponto de vista a partir da Ética a Nicómaco

 

Paula Cristina Moreira Silva Pereira

Instituto de Filosofia, Universidade do Porto (Portugal) – psilva@letras.up.pt

https://orcid.org/0000-0002-5349-9058

 

Maria Assumpta Pimenta Dias Coimbra

Instituto de Filosofia, Universidade do Porto (Portugal) – assumptacoimbra@gmail.com

https://orcid.org/0000-0002-9864-4757

 

ABSTRACT

We aim to reflect on the (dis)advantages of the current proliferation of messages and encounters, of “friendships”, facilitated by the use of digital technologies. At the same time, we confront the concept of “friendship” underlying contemporary interpersonal relationships, born from the adherence to digital applications, with Aristotle’s definition of friendship; a conception that, from an ethical-social perspective, has been a significant influence throughout the ages in Western society. In doing so, we evaluate some disruptions caused in terms of the (dis)integration of personal and social references, and of collective frameworks, traditionally structuring and emblematic in the consideration of authentic human living.

 

Propomo-nos ponderar as (des)vantagens da presente proliferação de mensagens e encontros, de “amizades”, proporcionadas com a utilização de tecnologias digitais. Concomitantemente, confrontar o conceito de “amizade” subjacente ao relacionamento interpessoal hodierno, fruto da adesão a aplicações digitais, com a definição de amizade em Aristóteles; uma conceção, do ponto de vista ético-social, que foi influência marcante ao longo dos tempos na sociedade ocidental. E, assim, avaliar algumas ruturas ocasionadas em termos de (des)integração de referenciais pessoais e sociais e de enquadramentos coletivos, tradicionalmente estruturantes e emblemáticos na consideração do viver humano autêntico.

 

KEYWORDS

Digital Technologies, Friendship, Individualism, Immediacy, Commodification of Existence

Tecnologias Digitais, Amizade, Individualismo, Imediatismo, Mercantilização da Existência

 

CONFLICTS OF INTEREST

The Authors declare no conflicts of interest.

 


SUBMITTED

August 13, 2024

 

ACCEPTED

September 20, 2024

 

PUBLISHED

September 21, 2024


 


 

1. Para começar

 

A presença das tecnologias digitais na vida quotidiana em relação direta, e perfeita, com a ideologia neoliberal tem provocado um declínio da conceção de vida comum e cívica entre os indivíduos (Han, 2014). Não queremos engrossar o discurso apocalíptico em relação às conquistas tecnológicas do nosso tempo, mas também não podemos ser indiferentes às implicações éticas, sociais, políticas e educacionais da sociedade tecnológica. Com efeito, muitas das conquistas tecnológicas têm proporcionado, por exemplo, melhor bem-estar, nomeadamente no que à saúde respeita ou na procura de técnicas energéticas mais sustentáveis. Contudo o homem está cada vez mais atingido na sua condição de ser em mundo, de ser com os outros; o que tem repercussões na ação de fazer e transformar o mundo e, portanto, nas experiências significativas de aprendizagem. Estas experiências suportam-se, acreditamos, no diálogo, no debate, na argumentação racional, necessárias à formação humana e à construção do espaço público.

São também conhecidas as componentes dialógica e formativa que a amizade tem na história da filosofia. O amigo do saber é também o amigo da partilha de experiência da construção do saber. A amizade comporta, sobretudo, a partir dos diálogos platónicos, uma clara e importante articulação entre a dimensão política, construindo laços necessários à construção da polis como comunidade, e a dimensão educativa, formando os cidadãos da polis. A amizade estava ligada ao saber, à construção do conhecimento e do mundo.

Ainda que para muitos a amizade guarde algumas dessas características, ela assume, cada vez mais, na sociedade da informação, outras densidades ou a falta delas. Talvez tenha diluído a narração numa profusão de conetividade e já não se alimenta da experiência e não a transmite à geração seguinte (Han, 2024). A storytelling, própria da sociedade consumista, substitui a narração necessária à formação da comunidade e dos cidadãos (Han, 2024).

A amizade digital, como uma expressão da sociedade tecnológica, mudou a própria conceção de amizade, o modo como nos relacionamos com os outros, como somos em mundo, sendo o conhecimento substituído ou reduzido ao processamento apressado de informação.

A regulação e domínio da articulação entre o mundo humano e maquinal tem impedido um envolvimento essencial à interação dos seres humanos uns com os outros e à construção da pessoa (Pereira, 2011: 66).

 

2. Amizade, experienciar humano e modelos digitais

 

A amizade digital como relevante dimensão da nossa vida social, com repercussões na construção da formação e identidades dos indivíduos prende-se com a necessidade premente de pensar, sinalizar e (des)incentivar comportamentos, atitudes e valores materializados com a expansão das tecnologias digitais. Em verdade, o nosso ecossistema começa a ser uma outra realidade, onde as vivências, a socialização e a sociabilidade cruzam outros contextos, através dos quais passamos a trabalhar, comunicar, aprender, produzir conhecimentos, conviver e ter “amigos”.

Como ponto prévio e subjacente, na esteira do conceito definido por Aristóteles e de algum modo tomado como padrão na tradição ocidental, questionamos a possibilidade, na atualidade, da manutenção e aplicação do termo amizade a determinadas situações existenciais, experienciada mercê do incremento exponencial de paradigmas digitais.

Julgamos as “amizades digitais” como deslumbramento inquietante numa conjuntura de fluxos e redes digitais, face a demostrações de individualismo, de relacionamentos efémeros, de excessivos consumismos, do culto de entretenimentos hedonistas e da universalização da mercantilização da cultura e das experiências imediatistas. Também destacando a efectiva possibilidade da cocriação de novos espaços em rede, implicando pessoas e máquinas, com supremacia da inteligência artificial (AI) na resolução de atividades outrora de exclusivo, ou quase exclusivo, trabalho humano. Avaliamo-las com base nos seguintes conceitos: individualismo, fragmentação, imediatismo e manipulação da existência em mundos virtuais. Estes conceitos, apesar de não serem recentes, expressam mudanças e conotações singulares na conjuntura atual.

Reenviamos para a “Ética a Nicómaco”, pressupondo no conceito de amizade de Aristóteles uma conceção substancial do ser humano, como autónomo e racional, delimitado pela sua estrutura ontológica e pelas suas competências epistemológicas e práticas. Esta última, remetendo para o horizonte ético e dimensão prática do humano enquanto tal, e que perdurou ao longo da tradição aristotélica-tomista, mas também na Modernidade. É essencialmente o que Aristóteles escreveu nos Livros VIII-IX da “Ética a Nicómaco” e no Livro IV da “Retórica”, que nos vai servir de suporte, sem a pretensão de um estudo exaustivo e da exploração de todas as vertentes e implicações inerentes ao próprio conceito de amizade.

Com a designação “amizade digital” queremos denotar a efetiva possibilidade, na era digital que atravessamos, do provocar mutações, mesmo, uma subversão no modo como são tidas e feitas as amizades, ou melhor dizendo, os relacionamentos online das pessoas. Com vista a uma demarcação do conceito tradicional de amizade, comummente aceite, hoje, provavelmente, deve usar-se outra designação para patentear alguns tipos de afeições incentivadas e cultivadas. Presumivelmente, a este respeito, devem ser mais apropriadas designações como: ligado, listado, registado, relacionado e pôr aspas na questão dos amigos. Ou então, segundo a caraterização da amizade de Aristóteles, situar, predominantemente, ao nível da utilidade e do prazer, isto é, como acidentais, em lugar de considerar os amigos de forma suprema, como eles são na sua essência. Salvo as exceções, parecem-nos ser estes os componentes mais facilitados nos contextos socioculturais hodiernos.

A reflexão de Aristóteles sobre a amizade, o estudo, a sistematicidade e o rigor conceptual, parecem-nos imprescindíveis na abordagem e discussão, do conceito de amizade. Ela é importante para o repensar da amizade nos dias de hoje, implicando a recuperação de princípios substanciais do ponto de vista humano que, presentemente, se estão a desintegrar e a desaproveitar. Aristóteles, a partir de condicionalismos epocais, aprofunda aspetos significativos tais como: a comunidade como fundamento da amizade, a relação entre a amizade e a felicidade, as condições externas e determinadas qualidades na sua consideração como a idade, o carácter e a duração.

 Pressupondo os avanços tecnocientíficos, as especificidades históricas e socioculturais da actualidade, impõe-se observar o imenso turbilhão tecnológico que está a transformar o modo de organização social, com implicações fulcrais ao nível da existência humana. Há que ter em consideração uma nova ecologia humana e outra cosmovisão, uma outra delimitação de cidadania e definição universal dos direitos humanos. É necessário reconhecer e avaliar a oportunidade de outros estilos de acesso à informação, de produção de conhecimento, distintas maneiras de socializar, educar e de comunicar, porque além da tradicional forma de comunicação pessoa a pessoa, concretizam-se interfaces com interacções entre pessoas e máquinas, e de máquinas com máquinas.

Admitimos que o conceito de amizade, fruto da mundividência atual, deva ser percebido através de outra bitola, de outras referências-padrão, caso de conceitos como: globalização, informação/comunicação digitalizada. Também focalizado perante outras interpretações do relacional, de espaço público, de práticas cívicas de cidadania, entre outros. A este respeito importa esclarecer que Aristóteles não nega a importância relacional do ser humano, mas sustentada pela categoria de substância, porque a amizade presente nas várias dimensões da vida humana tem a ver com a natureza humana em termos de racionalidade e sociabilidade, inclusive “mantém unidas as comunidades dentro dos Estados” (Aristóteles, 2012, p.198) e “porque a amizade radica na comunidade” (Aristóteles, 2012, p. 211). Segundo Aristóteles, a coexistência na mesma comunidade, a existência de algo comum, faz com que os indivíduos entrem em comunicação. A reciprocidade da amizade também implica que amigos comuniquem algo comum, que façam parte de uma comunidade mais vasta, isto é, uma comunidade política, vista como local de desenvolvimento das diversas amizades. É através da concórdia, como caraterística da amizade, que as pessoas de bem “ (…) desejam o que é justo e o que é de interesse comum, e é, portanto, para esses objetivos que se lançam em conjunto” (Aristóteles, 2012, pp. 235, 236).

Com o poder ubíquo e rizomático das redes digitais há que atender ao despoletar de outras aceções e apropriações do espaço público, a uma pluralidade de esferas públicas e de espaços diversos globais. Hoje “pode-se ser cidadão ativo sem se sair à rua” (Echeverría 1994, p. 54) e face aos novos cenários da globalização e à presença de comunidades definidas para além das delimitações tradicionais, há necessidade de uma nova reflexão sobre o conceito de espaço público (cfr. Innerarity 2006). Na mundividência atual é notória a preponderância de uma sociedade de fluxos e a consolidação, cada vez mais determinante, do padrão-rede, por sua vez, consubstanciando a presença contínua de pessoas, mesmo, de multidões nas redes sociais. Constata-se o proliferar dos relacionamentos multicanais, cuja enorme propensão conduz à indiferenciação e esbatimento de fronteiras entre público e privado, com os circunstancialismos de ordem pessoal a serem cultivados nas estruturas públicas, correlativamente, à politização do privado.

Significativamente Breton destaca que diferentemente do homem do humanismo clássico, “dirigido do interior” (1994, p. 50), agora a sua verdadeira essência é ser “dirigido do exterior” e retirar “a sua energia e a sua substância vital, não de qualidades intrínsecas que viriam do fundo de si mesmo, mas da sua capacidade, como indivíduo ‘informado’, conectado com ‘vastos sistemas de comunicação’ (…) “(Breton, 1994, p. 51).  Achamos pertinente evidenciar que esta afetação do sujeito na interação com os outrosas ligações no seio das redes – é mais importante do que as suas qualidades individuais. Do mesmo modo, o chamar a atenção para a secundarização de um sujeito pensante, autor dos próprios pensamentos e actuante mediante deliberações racionais e meditativas.  

Somos confrontados e surpreendidos, de modo avassalador, com toda uma multiplicidade de aplicações e ferramentas (Realidade Aumentada - AR, Internet das coisas - IoT), Cloud,…sensores, mais recentemente, o ChatGPT), plataformas (Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft), novos conceitos e designações (Big Data, Dataveillance, Fakenews, Deapfake, desinformação infodemia…), que fazem percecionar, indubitavelmente, a materialização de eras digitais, assentes no fluxo crescente e contínuo de informação digitalizada, desmaterializada, fragmentada, também, por vezes, falsificada e manipulada. O CHAT GPT lançado em 2023 pela empresa OpenAI, foi apresentado como uma janela de conversa onde é possível trocar mensagens com um modelo de inteligência artificial, treinado em grandes conjuntos de dados para a realização de tarefas específicas, e que, por sua vez, pode continuar a aprender ao longo do tempo e melhorar as suas performances. O CHAT GPT consiste numa ferramenta que trata de forma inteligente enormes volumes de dados, ocasionando respostas de texto semelhantes aos seres humanos e com utilidade em inúmeras aplicações, como chatbots, resposta a perguntas e geração de texto. Designadamente nas suas versões melhoradas (GPT-3 e GPT-3.5.), os efeitos da sua utilização já se sentem em inúmeras áreas, caso da educação, ciência, artes, informática. Também surgem os primeiros alertas para alguns dos seus benefícios (construir websites, resumir conversas do Whatsapp, criar guiões para jogos ou filmes, ou mesmo escrever as melhores descrições para publicações no Instagram) e começam a ser sinalizados riscos e desafios (a fraude na ciência, os plágios no ensino, o descrédito da escrita ou a perda de trabalhos em assessoria jurídica ou mesmo na informática).

Também a concretização de comunidades tecno-humanas, de uma coevolução com a máquina, em que a inteligência artificial, os algoritmos condicionam as opções humanas. Os modelos digitais estão a preencher, cada vez mais, um lugar hegemónico, acarretando enriquecimento e/ou empobrecimento ao experienciar humano (Marzá et al., 2024).

Para Aristóteles, em consonância com o género de afeição, há três tipos de amizade: pelo útil, pelo prazer e pelo bem em si, sendo esta última a amizade perfeita. A amizade pela utilidade implica considerar amigo alguém de quem posso tirar alguma vantagem ou lucro, seja para prazer ou para me tornar melhor e, reciprocamente, para quem existam as mesmas possibilidades de benefício. A amizade pelo prazer, de modo análogo à amizade pela utilidade, não se estabelece por aquilo que os próprios amigos são, mas pelas vantagens que deles advêm, neste caso por ser agradável ou em vista de um prazer que julgo adequado para mim e vice-versa. Consequentemente, o amigo não é desejado por si mesmo, mas pelo prazer que proporciona. Estes dois tipos de amizade são ontologicamente inferiores e os laços são mais facilmente rompidos, uma vez que têm a ver com dados contingentes e não com aspetos substanciais referentes ao amigo. A amizade pelo bem em si é uma manifestação de afeição mútua, todavia diverge das outras formas, porque surge mediante um ato da vontade, precedida por uma deliberação do intelecto. Esta amizade verdadeira deriva de um ato racional e não é puramente paixão; esta não consiste numa simples afeição, mas sim numa benevolência que admita reciprocidade de sentimento, querer mútuo e semelhante bem, assim como a retribuição é fruto do amor e não do acaso. Neste âmbito, um amigo é “um outro de si, fornece-lhe aquilo que ele é incapaz de arranjar apenas só por si. (…) Os amigos são o bem supremo de entre os chamados bens exteriores” (Aristóteles, 2012, p.241). Este tipo de amizade é rara e apanágio só de alguns, “porque são poucos os homens desta estirpe” (Aristóteles, 2012, p. 202), não consistindo numa prática banalizada, devido às dificuldades e condicionalismos inerentes ao carácter e à motivação do agir humano. Consiste numa amizade que existe “entre os homens de bem e os que são semelhantes a respeito da excelência”, implicando que sejam “bons em si próprios”, que sejam amigos de uma forma suprema, isto é, que sejam “amigos dos outros pelos que os outros são”, que gostem “dos amigos como eles são na sua essência” (Aristóteles, 2012, p. 201).

 Aristóteles também assevera que com amigos “somos capazes de pensar e agir melhor” (Aristóteles, 2012, p.197), que na amizade perfeita é essencial tempo, cumplicidade, confiança mútua e reciprocidade, porque não “se pode reconhecer alguém como amigo antes de cada um se ter mostrado ao outro digno de amizade e merecedor de confiança. (…) O desejo de amizade nasce depressa, mas a amizade não” (Aristóteles, 2012, p. 202).

Hoje, decididamente, não é esta a pauta vigente para os vínculos de amizade, com a euforia de estar conectado, com o ensimesmamento da informação, com a hegemonia de mensagens instantâneas, envio de likes, seguimento de youtubers… sem cumplicidade, sem reciprocidade e com base em afinidades de ordem emocional, em que os indivíduos se manifestam com ou sem pseudónimos, através de compromissos não duradoiros. Ou mediante a propagação de desinformação, de fakenews, informações falsificadas com fins políticos, económicos ou outros, que se propagam através das redes sociais (Twitter, Facebook…) o por aplicações mais fechadas como o Whatsapp, e cujos mecanismos de controlo são automatizados. Até porque a amizade não se pede, constrói-se na confiança mútua. E, neste sentido, afirma Aristóteles, “parece que não é possível ser-se amigo de muitas pessoas, pelo menos no sentido pleno da amizade…” (Aristóteles, 2012, p.206).

As “amizades digitais” como deslumbramento inquietante são sustentadas com base no individualismo, não do tipo cartesiano enfatizando um sujeito individual, racional e autónomo, valorizado pelas qualidades intrínsecas de ser pensante, mas sim num tipo de individualismo, em que os apelos sentimentais e os acontecimentos instantâneos e simultâneos, com forte descarga emocional, apelam e impelem à mobilização e indignação global. São abundantes os exemplos, nas conversações em rede e em sítios de relacionamento online, desta propensão imediatista e inclinação narcisística onde, amiúde e prioritariamente, os indivíduos centram-se e divulgam os seus próprios interesses imediatos. Somos presenteados com vastíssimos “amigos” prontos a partilhar connosco o que desejamos, todavia a identidade e as características exibidas podem não ser verdadeiras, mas produzidas em função de interesses individuas ou negociais pontuais.

 A noção de fragmentação, concomitantemente, permite-nos sinalizar a opção por esquemas solipsistas, em que o outro, o coletivo passam a ser tendencialmente perspetivados em função do eu, dos desejos individuais ou comerciais. Ainda se verifica a edificação de novas identidades, incluindo a viabilidade do brincar com a própria identidade, com o assumir de identidades mistas, eus descentrados, fluídos e múltiplos. As próprias comunidades virtuais, acentuando interesses em comum, são ocasião de reforço destes estilos individualistas de comportamento, com a concentração exclusiva em aspetos da imagem particular e/ou da comunidade a que pertence e na qual se identifica. A própria publicidade, em torno do indivíduo, corresponde e espelha os seus desejos consumistas, com os algoritmos a registarem os seus dados, numa rede ligada à publicidade online, e a disponibilizá-los a quem quer chegar até ele!

Este panorama assemelha-se ao que Maffesoli (1987) apelida de “neotribalismo”, para denotar a materialização de colectividades mantidas sem controlo social rígido, assentes na partilha de afinidades emocionais momentâneas, canalizadas para o quotidiano vivido presentemente e para os interesses instantâneos e esporádicos. Por sua vez, o conceito de imediatismo remete para uma cultura da instantaneidade do “aqui e agora”, com o presente a bastar-se a si mesmo, convertendo-se simultaneamente, ponto de partida e ponto de chegada. A instantaneidade passa “a ser, para além de elemento modalizador, sobretudo um elemento estruturante” (Carmelo, 1999, p. 94). Esta postura imediatista sorvedora de dados desordenados, desconexos e incoerentes não considera a sucessão temporal, o valorizar da tradição, das referências históricas, a procura da verdade universal e o projetar no futuro, do mesmo modo que acontecia no passado. A primazia colocada na eficácia e nas resoluções repentinas também não promove os pensamentos abstractos, a pesquisa, o aprofundamento do conhecimento e as reflexões críticas. Até porque o espírito crítico provocaria outra atitude no lidar com a informação e no combate à desinformação, dando lugar à dúvida, análise e confrontação prévia com outras informações.

O acompanhamento da evolução tecnológica em curso, o avanço desmesurado e a sua expansão disruptiva e intrusiva levam-nos a considerar o termo manipulação como elemento a ter em conta na contextualização das amizades digitais. No panorama político e sociocultural têm sido significativos os alertas que têm vindo a ser feitos, a respeito de todo um rol de informações falsificadas, isto é, manipuladas, com impacto nefasto na vida pessoal e colectiva. Começa a ser patente que, subjacente à divulgação e posse da informação, equações matemáticas ponderam sem intervenção humana, através de um processo automático de decisão e influenciam as nossas deliberações e as nossas apreciações. São opções pré-determinadas por algoritmos, sem existência física, que codificam, representam e executam em tempo real com vista à tomada de posições. Inúmeros são os exemplos da imiscuição da inteligência artificial, da implicação de algoritmos, para o bem e para o mal, na vida quotidiana, prevendo o que temos de saber, fazer e, mesmo, substituindo-nos nas tarefas e decisões, como ao nível do trabalho, venda de acções, transacções financeiras, ordenação da mobilidade, segurança, aspiradores inteligentes, carros pilotados sem condutor, selecção de candidatos a emprego, conteúdo de notícias, composição de obras de Bach, leitura da Bíblia, robôs que interagem connosco, uso do cartão de crédito, pesquisas no Google… também o clicar no botão like no Facebook e arranjar amigos.

Assistimos à captura de dados por grandes empresas (GAFAM: Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft…), minando a privacidade, gerindo os dados e furtando as identidades digitais. Presenciamos uma sociedade de plataformas, subjugada por gigantes digitais, sufocadora da competição e da diversidade, promotora de monopólios e de domínio, apenas de alguns. Esta organização do espaço digital provoca a mercantilização das atividades digitais e a manipulação das emoções online, porque as nossas pegadas digitais criam valor para essas empresas.

Em verdade, são já significativas as advertências de que os dados e meta dados dos utilizadores constituem uma mais-valia para as plataformas digitais. Estes são matéria-prima para melhores previsões sobre os comportamentos perante uma mensagem publicitária, ao fornecerem informações minuciadas sobre os utilizadores, por sua vez, retiradas por equipamentos inteligentes (apps, smartwatches …) e, maioritariamente, das redes sociais, designadamente, sobre que é pesquisado na Internet, como e quando o fazem, o que conversam, as expressões faciais originadas, entre outras recolhas via câmaras, microfones, GPS e demais tecnologias.

Shoshana Zuboff (2020) denuncia a presença de “uma nova ordem económica”, do “capitalismo da vigilância”, expandindo-se nos mais variados domínios (seguros, cuidados de saúde, educação, imobiliário, comércio …) e socorrendo-se e apropriando-se da “experiência humana”, usando-a de modo oculto como e matéria-prima em termos comerciais. Fala-nos numa distopia que conduz a um mundo sem escapatórias”, onde não existe a privacidade das nossas mentes e pensamentos e deixa de haver interior.

Apresenta-se com sentido antropológico imprescindível refletir sobre o sujeito rede e avaliar as implicações dos pontos de vista axiológico, epistémico, ontológico… mormente estimar a possibilidade de como cultivar o humano nesta ambiência digital e inquirir acerca da compatibilidade entre viver humano e digitalização e mercantilização da existência. 

 Como julgar as amizades, os nossos julgamentos e decisões numa ambiência onde os algoritmos de software predeterminam e retiram-nos o controlo sobre os nossos próprios dados? Estamos a delegar nos algoritmos decisões, de ordem ética e moral, que não devem ser tomadas por máquinas? Da nossa parte, tendo em conta o tempo actual e os que se avizinham, acrescentamos, que a inteligência artificial deve ser utilizada, sem pôr em causa os direitos fundamentais das pessoas e as conquistas universais, tais como a justiça, a liberdade, a privacidade e a segurança, entre outros aspectos. Que o humano não pode ser totalmente dirigido por algoritmos, suscetíveis de coartarem a sua liberdade de decisão e intercederem na qualidade das suas opções sociais, culturais e educacionais.

Podemos restringir a inteligência humana à explicação puramente lógico-racional, desacreditando os julgamentos éticos, a inteligência social e o lado instintivo? Como equacionar a amizade se os nossos afectos e juízos são prefixados por algoritmos?

 

3. Breves considerações finais

 

Observam-se mudanças decisivas na Internet enquanto tecnologia, outrora, rede das redes, potenciadora de liberdade, de inspiração, de inovação, de pluralidade de redes colaborativas, disponibilizando inúmeras ferramentas de índole social como desafio relacional, como meio de cooperação e de aprendizagem de trabalho conjunto. É nesta conjuntura que situamos as preconizações de P. Lévy (1995) acerca da inteligência coletiva, da cibercultura e do ciberespaço, assentando no reconhecimento e enriquecimento mútuo das pessoas, numa lógica de proximidade e implicação, e de incitamento à valorização dos capitais social, intelectual, cultural e técnico.

 Apercebemo-nos que as tecnologias estão numa evolução maior do que a capacidade humana, mesmo, a substituírem-se às aptidões intrinsecamente humanas.

Torna-se imprescindível o exercício crítico e a reflexão sobre o(s) sentido(s) antropológico(s) do nosso caminhar, designadamente, percebendo que as relações de amizade têm de continuar a ser valorizadas a nível analógico, através de interações reais mais profundas e fundamentais. Que as amizades sejam incentivadoras de atitudes éticas e responsáveis, de comportamentos sociais e de relações de entreajuda. Em relação aos amigos, defender que não podemos banalizar, manipular, instrumentalizar o conceito, nem subordinar as amizades à lógica algorítmica e empresarial, e, muito menos ainda, banalizar os afetos. Perante a automatização, incentivamos à fixação de matrizes éticas, à (re)definição de limites morais, não descurando atitudes, tais como a compaixão e cooperação.

Hodiernamente é premente continuar a destacar o impacto do digital, essencialmente, remeter para uma compreensão e avaliação do efeito sociocultural das tecnologias digitais, com repercussões decisivas na assunção da cidadania e na educação. Mesmo, chamando-se a atenção para a importância da cidadania ser incentivada e construída no seio da escola.

Há necessidade de uma aposta na educação, que ressalve a dimensão antropológica e ética. Do lado do educador/ professor, nunca é demais, realçar, que tem de estar munidos de uma preparação científica e pedagógica, mas, sobretudo, humana. Pois os reptos são importantíssimos e temos de decidir um caminho que nos permita beneficiar da presente era digital e de outras tecnologias emergentes. E pessoalmente penso na necessidade do perspetivar das situações mais como reptos, que barreiras inultrapassáveis.

Acrescentamos que é preciso não olvidar todo um património de reflexões e de questões como orientação para o futuro. É necessário ensinar, sublinhando, que os objetos técnicos são isso mesmo: objetos técnicos; e procedimentos técnicos nunca podem ser confundidos com pensamentos e com reflexão.

“Provavelmente o que estamos a viver causa em muitos de nós um sentimento de impotência, mas é na opção entre sucumbir ou resistir que a aventura humana se desenhará e de que depende o desenvolvimento (e a felicidade) do homem” (Pereira, 2011, 74). 

 

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