Crossroads of knowledge: Ethnographic dispatches of narratives from young Umbanda followers in the terreiro and at school

 

Encruzilhadas de saberes: Os despachos etnográficos de narrativas de jovens umbandistas no terreiro e na escola

 

Marcelo Máximo Purificação

Centro Universitário Mais (UNIMAIS); Centro Universitário de Mineiros (UNIFIMES) – maximo@unifimes.edu.br

https://orcid.org/0000-0002-4788-016X

 

Daniela Ripoll

Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) – daniela.ripoll@ulbra.br

https://orcid.org/0000-0002-7247-2600

 

ABSTRACT

This study was carried out based on a qualitative ethnographic study, developed using autobiography, autobiographical narratives and ethnographic narratives, with young umbandistas from two barracões located in the municipalities of Mineiros and Novo Gama in Goiás/Brazil and from a state public school in Mineiros, between the months of October 2021 and July 2022, with the following objective: to understand how young umbandistas from Mineiros and Novo Gama, in the terreiro and at school, position themselves in terms of identity and religious belonging. At the intersection between school, Umbanda barracks, everyday life and culture, there are traces of intercultural youth identities. The school is a plural and intercultural place, where multiple identities and religious differences are manifested. However, to maintain religious identities, it is necessary to understand the limits between them and the religious differences that define them and which symbols and representations gravitate around them, as well as the effects of the impacts, positive or negative, that cross them, in addition to the relationships and teaching-learning processes present in their context.

 

Este estudo realizou-se a partir de um estudo etnográfico qualitativo, desenvolvido com uso da autobiografia, narrativas autobiográficas e narrativas etnográficas, com jovens umbandistas de dois barracões situados nos municípios de Mineiros e Novo Gama em Goiás/Brasil e de uma escola pública estadual de Mineiros, entre os meses de outubro de 2021 e julho de 2022, com o seguinte objetivo: compreender como jovens umbandistas de Mineiros e Novo Gama, no terreiro e na escola, se posicionam em termos identitários e de pertencimento religioso. No cruzamento entre escola, barracões de umbanda, cotidiano e cultura, estão rastros de identidades juvenis interculturais. A escola é um lugar plural e intercultural, onde se manifestam múltiplas identidades e diferenças religiosas. Mas, para manter as identidades religiosas, é preciso entender os limites entre elas e as diferenças religiosas que as definem e quais símbolos e representações gravitam em torno delas, bem como os efeitos dos impactos, positivos ou negativos, que as atravessam, além das relações e processos de ensino-aprendizagem presentes em seu contexto.

 

KEYWORDS

Young Umbanda fans, Crossroads of knowledge, Dispatches, Identity, Cultural studies, Umbanda

Jovens umbandistas, Encruzilhada de saberes, Despachos, Identidade, Estudos culturais, Umbanda

 

CONFLICTS OF INTEREST

The Authors declare no conflicts of interest.

 


 

1. Introdução

 

Neste texto, o termo “encruzilhada de saberes” refere-se ao cruzamento de conhecimentos que permeiam a trajetória social do jovem umbandista, perpassando pelo campo social (do cotidiano), das culturas, dos aspectos religiosos e da vida escolar. Já o termo “despachar” aparece no sentido de encaminhar, dar direcionamentos aos saberes e conhecimentos gerados a partir da intersecção desses campos de saberes e conhecimentos.

Questões emergem em minha busca por respostas e, no emaranhado delas, busco saber: como se manifestam as identidades dos jovens participantes da Umbanda? O que significa ser um jovem umbandista? Como essas identidades são negociadas? Como os jovens falam sobre o sagrado? Como eles falam sobre sua religião? Como seus corpos materializam os conhecimentos e os saberes umbandistas? Como as práticas desses jovens umbandistas e suas vivências contribuem, interferem na construção desse sujeito? Que saberes emergem da relação do jovem com o terreiro e como isso repercute na escola? Como os saberes que emergem da encruzilhada do cotidiano com a cultura, com a religião e com a escola são despachados nas narrativas dos jovens umbandistas?

A análise da Umbanda no cotidiano, no corpo e na vida dos jovens (de minha região – Mineiros-GO, e da região onde atuo como sacerdote umbandista – Novo Gama-GO) se justifica de várias formas: a Umbanda surgiu por volta do século XIX, tendo a pretensão de ser uma religião brasileira. Nela, mesclam-se vários fragmentos de religiões até então conhecidas, como o catolicismo, o espiritismo kardecista e os cultos dos povos originários africanos e brasileiros (Rosenfeld,1993). É importante lembrar que as religiões de matriz africana foram incorporadas à cultura brasileira há muito tempo, quando os primeiros negros escravizados chegaram ao país e encontraram na religiosidade um meio de preservar suas tradições, suas línguas, seus saberes e valores trazidos da África. No entanto, mesmo com as manifestações afros inseridas na cultura brasileira, há mais de 500 anos, a desvalorização do negro e a visão preconceituosa da cultura afro-brasileira persistem. O fundamento de seus dogmas e de seu ritual residiria, assim, na união dos cultos das divindades da natureza com a descida dos espíritos dos mortos aos médiuns, possibilitada pela teoria da afinidade e pela hierarquia espiritual defendida por Kardec, em que as falanges étnicas no espaço seriam controladas pelos orixás nagôs (Oliveira, 2017).

Uma das formas de resistência e preservação das tradições trazidas da África é o sincretismo religioso, que se manifesta como uma estratégia de adaptação e sobrevivência cultural. Segundo Araújo, em seu livro “Diaspora, Transformation, and the Transculturation of African Performance Traditions” (2008, p. 42), o sincretismo religioso é uma resposta à colonização e à imposição de valores e crenças europeias sobre os africanos escravizados. Nesse contexto, a fusão de elementos cristãos com práticas religiosas tradicionais africanas permitiu aos escravizados a manutenção de sua identidade cultural e espiritual, mesmo sob condições adversas. Como exemplificado por Carneiro, em “Candomblés da Bahia” (1964, p. 78), a religião afro-brasileira do Candomblé é um dos exemplos mais conhecidos de sincretismo religioso no Brasil, sendo uma mistura de elementos do candomblé africano com o catolicismo, através da associação de orixás afro-brasileiros com santos católicos. Portanto, o sincretismo religioso se configura como uma prática de resistência que permitiu aos africanos preservar suas tradições e identidade cultural durante a experiência traumática da escravidão.

No seu estudo, Pierre Sanchis (2001) destaca que a representação identitária da Umbanda tem passado por um processo de transformação e reinterpretação de narrativas ao longo das últimas décadas. Essas mudanças são influenciadas por demandas sociais e culturais que despertaram nos praticantes de Umbanda o desejo de integração e visibilidade social. Oliveira (2017) e Bastide (2006) argumentam que esse fenômeno ocorre quando a Umbanda deixa de ser restrita às favelas e começa a se estabelecer nos espaços urbanos, abandonando atitudes e narrativas que entrem em contradição com a sociedade moderna. Conforme apontado por Bastide (1985), essa contradição é resultado do fato de que, nas grandes cidades, a população negra recebia mensagens conflitantes: de um lado, havia a possibilidade de ascensão social, mas, por outro lado, ela ainda era marginalizada e vivia na periferia urbana. Nesse processo, a transformação da identidade umbandista passa a estar associada aos valores considerados ideais pela sociedade, sendo guiada gradualmente tanto pelas forças da natureza quanto por esses valores. Isso implica numa reorientação dos padrões sociais e morais para os praticantes de Umbanda.

A questão do branqueamento na Umbanda é complexa e envolve diferentes perspectivas. No entanto, é importante salientar que não se pode generalizar a experiência de todos os umbandistas, pois há diversas variações e abordagens dentro dessa religião. Na perspectiva de Roger Bastide (2006), antropólogo francês que estudou a Umbanda no Brasil, ele sugeriu que, ao longo do tempo, a Umbanda teria se afastado das suas raízes africanas e se tornado menos identificada com a cultura afro-brasileira. Ele argumentou que isso aconteceu devido à influência de elementos indígenas, europeus e orientais na religião. Segundo Bastide, isso teria contribuído para um processo de branqueamento da Umbanda.

Por outro lado, é necessário considerar a perspectiva de Lilia Moritz Schwarcz e Nei Lopes, segundo os quais o sincretismo religioso é um aspecto importante da cultura brasileira, resultante de um processo histórico de mistura e hibridização. Para eles, a Umbanda é uma religião genuinamente brasileira, que incorpora elementos de diferentes tradições e culturas. Nesse sentido, é preciso ter cuidado com generalizações, pois a presença de elementos brancos na Umbanda não implica necessariamente um afastamento das raízes afro-brasileiras. Os umbandistas são indivíduos que têm autonomia e liberdade para decidir como praticar sua religião, e essa prática pode variar amplamente dependendo do contexto histórico, regional e social. Entretanto, é possível observar que, em alguns momentos e lugares, ocorreu um processo de elitização da Umbanda, no qual alguns praticantes buscaram se distanciar de suas origens mais populares, associando a religião a práticas e rituais mais “cultos” e “refinados”. Isso pode ter contribuído para a percepção de um branqueamento da Umbanda, especialmente quando observamos a predominância de umbandistas brancos em certos espaços religiosos.

A prática de religiões de matriz africana, conforme censo de 2010, é de um pouco mais de 1%. Autores como Jorge e Rivas (2012), Duccini e Rabelo (2010), Andrade (2016), entre outros, pontuam que os números não refletem a realidade da Umbanda, dada a dimensão do seu campo religioso. Entendo que os dados podem estar subestimados, e digo isso porque convivo diariamente com fiéis que em função da intolerância religiosa, não se sentem a vontade para afirmar seus vínculos com a Umbanda e com o Candomblé, logo, nunca falam sobre sua denominação religiosa, e, quando o fazem, apresentam-se como católicos ou espíritas.

Vejo, também, que o censo contribui para a subestimação dos números, pois permite que cada entrevistado escolha apenas uma religião. No Brasil, o trânsito religioso é muito grande, mas as pessoas, geralmente, afirmam pertencer a religiões hierarquicamente institucionalizadas[1]. Na Bahia, por exemplo (meu Estado natal), é possível ver pessoas frequentando ativamente a Igreja Católica e a Umbanda, ou Candomblé. Nos barracões de Umbanda onde trabalho, atendo pessoas de diferentes religiões. Entendo que ir uma ou duas vezes a uma religião diferente da nossa pode ser visto como um ato de benevolência e respeito à diversidade religiosa, porém, dentro desse grupo de visitantes, temos pessoas lá que, aos domingos, estão na sua religião principal e, às segundas, ou sextas, ou sábados, estão lá na Umbanda pedindo axé.

No contexto apresentado, existem duas situações distintas que podem ser caracterizadas como fiéis envergonhados ou identidades umbandistas rasuradas. Essas pessoas não se deixam ser facilmente capturadas e apagadas socialmente, preferindo se camuflar e se esconder de questões sociais racistas e preconceituosas. Essa forma de agir pode ser explicada pela construção histórica que recebemos desde o nascimento. Ao longo de nossas vidas, foi-nos ensinado que pertencer a uma religião de matriz africana é considerado negativo. Consequentemente, é comum ouvirmos discursos pejorativos sobre essas religiões e identificar diversos estereótipos que associam seus rituais a forças malignas e demoníacas. (Silva, 2007).

Diante deste contexto, é compreensível que pessoas que ainda não tenham construído sua identidade religiosa, que estejam apenas se conhecendo ou que não estejam engajadas na luta pelo respeito à diversidade religiosa e pelo combate à intolerância, não se sintam motivadas a se declararem como participantes dessas religiões. Afinal, por que se expor e desejar pertencer a um grupo que sofre discriminação?

Por isso, é relevante aproveitar espaços como o da Pós-Graduação e o ambiente universitário em geral para refletir sobre o cotidiano e os problemas que enfrentamos. Devemos questionar o papel das instituições públicas, como o IBGE, e pensar sobre o que elas desejam expressar sobre a sociedade brasileira e para quem seus resultados são importantes. No que diz respeito à Umbanda, é importante mencionar que essa religião não tem como objetivo atrair ou converter fiéis. Ela é uma religião livre para quem desejar conhecê-la, frequentar seus centros e até mesmo se iniciar no seu culto, mas isso é feito por livre escolha. Além disso, é válido ressaltar que pessoas de diferentes religiões frequentam centros espíritas e terreiros umbandistas, o que reflete o sincretismo religioso existente no Brasil. (Silva, 2007).

Segundo Silva (2007), a noção de identidades umbandistas rasuradas ou envergonhadas refere-se a uma situação em que indivíduos umbandistas sentem vergonha ou tentam esconder sua religião por causa do estigma social associado à Umbanda. Isso ocorre porque a Umbanda, como religião afro-brasileira, enfrenta preconceito e discriminação por parte de algumas pessoas e instituições. Essa vergonha ou tentativa de esconder a identidade umbandista pode ser motivada pelo medo de serem excluídos, marginalizados ou ridicularizados pela sociedade. É uma forma de proteção para evitar o estigma e a discriminação.

 

No entanto, Silva (2007) argumenta que essa tentativa de ocultar a identidade umbandista tem consequências negativas para os indivíduos e para a própria Umbanda. Ela enfraquece o poder e a visibilidade da religião, além de afetar o bem-estar emocional dos umbandistas envergonhados. Silva (2007) defende a importância de uma construção positiva e orgulhosa da identidade umbandista, buscando romper com o estigma e promover a aceitação social dessa religião afro-brasileira. Ele chama a atenção para o papel dos umbandistas em compartilhar informações e desafiar estereótipos negativos, a fim de combater a discriminação e promover a igualdade religiosa.

Outra razão para a abordagem da temática nesta investigação é, sobretudo, social e científica. O contexto social brasileiro, nos últimos anos, tem sido atravessado por concepções neoliberais, gerando um processo progressivo de dissolução de políticas públicas (atribuições do Estado), aumentando o nível de exigência e a busca por resultados, no campo da educação, contexto em que o termo desigualdade deixa de se limitar a questões econômicas e passa a transitar em outros setores e contextos, repercutindo, inclusive, reivindicações de natureza identitária (Melucci, 2001).

Nessa etapa, entende-se que a reflexão sobre as desigualdades centradas nas dimensões da cultura e da religião pode fornecer avaliações fundamentais das construções identitárias dos jovens umbandistas que se encontram nesse novo contexto social, em um grupo denominado minoria, marcados socialmente pelo estigma e pelo preconceito. Discutir o problema pode desencadear condições de equidade e garantia de direitos, dado o aparato legal presente na Constituição Federal de 1988; na Lei de Diretrizes e Bases Educacionais (LDB, 9.394), na Lei 10.639 que inclui disciplinas obrigatórias relacionadas à cultura afro-brasileira nos currículos escolares e na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que, atualmente, orienta os currículos escolares (Leisner, 2009).

Em outro sentido, também aponto que o objeto de estudo aqui proposto nesta tese de doutoramento tem relevância social, pois parte da constatação de que questões relacionadas a contextos interculturais, ou seja, referentes à coexistência de diferentes concepções culturais no mesmo espaço social, a exemplo da escola, são fundamentais e podem colaborar para o entendimento e o ajustamento da sociedade moderna e sua complexidade.

 

2. Encruzilhadas de saberes

 

A encruzilhada é um lugar onde convergem diferentes caminhos. São campos de possibilidade, tempo/espaço de poder, onde todas as opções se cruzam, dialogam, se entrelaçam e se contaminam. A sugestão na encruzilhada é a da transgressão, é a traquinagem da juventude umbandista, sujeito central deste estudo. A encruzilhada desfigura a linearidade e a pureza dos caminhos singulares, pois seus cantos e cruzamentos enfatizam os limites como zonas pluriversais, em que múltiplos saberes se cruzam, convivem e pluralizam experiências e suas respectivas práticas de saberes (Rufino-Júnior, 2018).

Neste estudo, estabeleço a intersecção entre terreiros, escola, cultura e cotidiano, a partir do assentamento proposto na própria estrutura da encruzilhada e na amplitude de seus significados na vida dos jovens umbandistas e nos seus processos identitários. A noção de assentamento propõe pensar as “culturas e saberes afrodiaspóricos”[2] como práticas que vibram, encarnam e magnetizam umas às outras, tecendo um tapete que se desdobra em um terreno comum, que recebe solo de suas próprias condições e motivações por meio dos processos de invenção da cultura, territorialidade, conhecimento e identidade. O que proponho com essa conexão é utilizar o argumento que indica a existência e as condições de uma base estruturante que identifica e reforça as inúmeras expressões recriadas no cotidiano (Rufino-Júnior, 2018). A educação, nesse sentido, apresenta-se como caminho, como possibilidade de reinvenção do ser, responsável e comprometida com a justiça cognitiva/social e com a vida em sua diversidade e imanência. Os terreiros e sua proximidade com o cotidiano e a cultura popular permitem apontar para a ampliação das interpretações e do conhecimento do mundo. Em cada pedido de permissão ao virar da esquina, em cada gole jogado no chão, nos repertórios gestuais, nas bênçãos, no encadeamento de versos, na circunscrição de sons e ritmos, na moeda jogada na porta do mercado. Os terreiros são as múltiplas temporalidades/espacialidades encarnadas por esses jovens praticantes de Umbanda, que geram saberes praticados (no sentido de vividos) e ensinados, repercutindo, assim, claramente, nas representações identitárias desses jovens (Rufino-Júnior, 2018).

Segundo Rufino-Júnior (2018), as encruzilhadas não são meras metáforas ou alegorias, nem podem ser reduzidas ao tipo de fetichismo que caracteriza o racismo e uma mentalidade cartesiana e fantasmagórica. As encruzilhadas são as bocas do mundo, são saberes praticados na periferia por inúmeras criaturas que usam a tecnologia e a poesia para afastar a falta abrindo o caminho. Exu, como dono da encruzilhada, é uma excelência ética que fala de tudo o que é e pode ser. Ensina-nos a pensar constante e abertamente sobre nossas ações. A orientação da encruzilhada revela as contradições desse mundo dividido, os seres quebrados, as deficiências e as decepções. Talvez surja da hibridização e da diversidade como poesia/política na emergência de novas criaturas e na reconquista do encanto do mundo.

Pesquisar os jovens umbandistas é entrar na encruzilhada impregnada de sincretismo, hibridismo, tradução cultural e miscigenação que marcam as identidades de jovens umbandistas e provocam muitas discussões e divergências entre os estudiosos. Embora essas discussões sejam de grande urgência, uma vez apresentadas, podemos ver os limites, e as estratégias de “diferença” que emergem das encruzilhadas de saberes onde os jovens umbandistas inauguram novas formas de viver emanadas na dialética social, marcadas pelo conciliar de velhas e tradicionais formas de se viver. Assim, “impede que um sistema se estabilize em um todo completamente saturado” (Hall, 2003, p. 61), evidenciando que as fronteiras entre os jovens umbandistas e terreiros, escola, cultura e cotidianos são frouxas, fluidas, de uma forma que não apenas permitem um duplo vínculo, mas também introduzem uma nova e exuberante identidade afro-brasileira.

Existe outro caminho conceitual que também deve ser seguido, além do caminho da encruzilhada, é o caminho da colonialidade. Rufino-Júnior (2018) prefere chamar esse fenômeno de marafunda ou colonialismo, que é entendido como uma condição latino-americana sujeita às raízes mais profundas do sistema mundial europeu racista, capitalista, cristão, patriarcal e moderno, juntamente com suas formas de continuação. A violência e a lógica são responsáveis pelo domínio da existência, do conhecimento e do poder. A noção de interseção surge como uma prontidão para novos rumos, poesia, campos de possibilidade, prática de descoberta e afirmação da vida, perspectivas transgressoras em relação às limitações, decepções e monólogos do mundo.

Rufino-Júnior (2018) também afirma que a Modernidade ocidental como encruzilhada surge para revelar não só os limites e contradições da produção de um mundo binário que gera escassez e desilusão, mas também para reivindicar a encruzilhada como um conceito que nos permite ler o mundo ao nosso redor, compreendendo as intenções que o constituem e movem. O mundo das interseções se configura como um horizonte para conferir credibilidade às ambivalências, ao imprevisível, às contaminações, às dobras, às interseções, ao não dito, às múltiplas presenças, sabedorias e linguagens, ou seja, possibilidades. A encruzilhada não nega a presença da modernidade ocidental, mas a desassocia de seu pedestal e a expõe, mostrando que é tão tendenciosa e poluída quanto as outras formas que ela julga. O conceito de encruzilhada combate todas as formas de absolutismo, sejam elas ocidentais ou não ocidentais.

Para responder às proposições na perspectiva de Rufino-Júnior (2018): a violência e a lógica levam ao domínio da existência? Que lógica é essa? O racismo, o colonialismo e a colonialidade marcam nosso tempo. A raça e seus contratos de dominação (Mills, 2008) são os fundamentos da lógica colonial, que causam a morte, o aniquilamento, o desencanto e a humilhação”. Esses são os fundamentos da lógica colonial mencionada anteriormente. A origem do conceito de encruzilhada é atribuída a Rufino-Júnior ou a algum grupo de pesquisa não foi mencionada no texto.

 

O poder de cruzar é o que chamo de cruz. A cruz torna-se o movimento inacabado, proeminente, confuso e incompreensível. O mundo é uma encruzilhada e por isso é um campo de possibilidades infinitas, inacabadas, e é Exu quem comanda as estripulias. A encruzilhada nos possibilita uma crítica à linearidade histórica e às obsessões positivistas do modelo de racionalidade ocidental, atravessá-la é considerar os caminhos enquanto possibilidades. A encruzilhada como um dos símbolos de seus domínios e potências emerge como horizonte disponível para múltiplas e inacabadas invenções (Rufino-Júnior, 2018).

A Umbanda desempenha um papel central na caracterização do personagem principal e na construção da estrutura do espetáculo. A dinâmica da incorporação e desencarnação, que representa a chegada e partida de uma entidade no corpo do Filho de Santo, é recriada durante a performance, permitindo a troca de personagens que se desdobram do personagem central ao longo da narrativa. O sincretismo ocorre nesse contexto, especificamente na encruzilhada, um local simbólico onde diferentes formas discursivas são construídas a partir dos discursos que coexistem. A encruzilhada, como um terceiro lugar ou um local intermediário descrito por Bhabha, desempenha um papel fundamental na produção de diversos sentidos e significados. Nesse espaço, os conceitos de sujeito híbrido, mestiço e liminar, articulados pela crítica pós-colonial, refletem os efeitos dos processos intertextuais e transculturais que ocorrem nessa encruzilhada. Essa interação permite a emergência de possíveis trocas entre registros, conceitos e simbolismos diversos, caracterizados pela sua fluidez e mobilidade, na circulação da cultura e do conhecimento presentes nessa encruzilhada. Em outras palavras, essa definição permite interpretar o trânsito sistêmico e epistêmico resultante de processos inter ou transculturais, nos quais diferentes registros, conceitos e simbolismos se confrontam e dialogam, refletindo a complexidade da vida (Costa; Pereira, 2016).

 

2.1. A encruzilhada colonial

 

Falando da encruzilhada colonial, interessa-me o legado que o processo de colonização deixou nas subjetividades, cosmologias, linguagem, modos de explicar o mundo das religiões afro, principalmente na Umbanda. A encruzilhada colonial apresenta-nos, por um lado, Exu, um defensor essencial da tradução da sabedoria negro-africana, e, por outro, Exu marcado por investimentos coloniais/racistas que se esforçam para transfigurá-lo em um diabo judaico-cristão. A luta exposta nessa ambiguidade mostra que aqui - nas terras brasileiras - essas características distintas e duais não são bem compreendidas como parte de seres diferentes, mas como partes entrelaçadas de um mesmo ser. A caldeira colonial forjou os elementos do projeto de dominação com os componentes herdados de outras tradições seculares, mas isso está longe de indicar um equacionamento dos problemas, uma possível superação dos conflitos. Ao contrário, essas interseções dão o tom de como, aqui, não há passividade, e como as mais diversas formas de conflito se entrelaçam em um tecido complexo (Rufino-Júnior, 2018).

No contexto narrado pelo autor, que se refere ao período colonial, torna-se evidente a existência de um embate entre a religiosidade propagada e defendida pelas religiões afro-brasileiras e a cultura cristã predominante. A devoção sagrada desses grupos, que incluem também os indígenas, desperta temor e indignação na sociedade ocidental. Segundo Borges e Baptista (2020), essa dinâmica de colonização do imaginário colonial se manifestou por meio da violenta e brutal supressão dos símbolos, crenças, ideias, imagens e conhecimentos dos povos colonizados. No que se refere à religiosidade, os colonizados foram privados de sua autonomia, visto que lhes foi imposto o modelo de expressão religiosa dos governantes colonizadores. A supressão dos sistemas de crenças representou uma estratégia eficaz de controle social, cultural e religioso sobre os dominados, conforme apontado por Quijano (1992) e Mignolo (2003).

A existência pendular, a condição vacilante do ser, é, em princípio, o efeito do que se expressa pelo fenômeno da cruz. Assim, recito a provocação: o que a agenda colonial tentou produzir como sistema de controle da vida, a partir de uma ordem baseada em binarismos, que leva à redução de complexidades, é pouco destacado por uma leitura da gramática poética das encruzilhadas. Para os seres nascidos na esquina da Modernidade, os seres/saberes pautados na poética da encruzilhada, o que palpita e dá o tom da meta na reivindicação da vida, é a máxima que circula nos terreiros que diz: “A encruzilhada é o umbigo do mundo”. A encruzilhada aparece como elemento fundamental desse processo, pois a noção de restituição é um ponto central na possibilidade de inscrição de uma nova história. Isso deve ser construído, envolvido na invenção de novos seres e no fim do mundo pautado pela responsabilidade com a justiça. Praticar a encruzilhada nos mostra como um caminho possível a exploração de fronteiras, aquelas que, embora construídas a priori para dividir o mundo, revelam a complexa intriga que o codifica. A perspectiva analítica lançada pelo conceito de encruzilhada me permite cavar as rachaduras, os ângulos, as dobras, os interstícios, cantando as impurezas, a desordem e o caos típicos dos efeitos malignos, conforme pontua Rufino-Júnior (2018).

Segundo o autor, o conflito é também um elemento estruturante da lógica colonial. O desejo de purificá-lo pode indicar uma obsessão, uma transmutação do bem contra o mal no processo religioso, típico das tradições judaico-cristãs. O reforço, a subjetivação da fé maniqueísta e sua utilização como diretriz para uma política de civilização é algo que deve ser problematizado com veemência. Do ponto de vista da ética judaico-cristã, não há como se considerar parte efetiva do problema, por isso vale lembrar Sartre, que diz: “o inferno são os outros!” O inferno são os outros: negros, indígenas, silvestres, adoradores de deuses pagãos, primitivos, incivilizados, bárbaros, animalescos, sem alma, enfim, desumanos. De uma perspectiva global que inclui a batalha em curso entre luz e escuridão, há apenas um caminho para esse padrão de ser/saber/poder, extermínio. É preciso lembrar que o extermínio, aqui entendido, se dá de diversas formas, desde a morte de corpos, saberes e gramáticas até as mais diversas formas de subordinação que influenciam violentamente os chamados “outros” ao incrível possível. Na intersecção da moderna dicotomia “mente e corpo”, denuncia-se que a erradicação das materialidades é também a erradicação de elementos que vagueiam no plano sensorial (Rufino-Júnior, 2018).

 

2.2. Encruzilhada decolonial

 

A perspectiva decolonial descentraliza narrativas dominantes – eurocêntricas – de desconstrução de perspectivas históricas e epistemológicas que concebem a modernidade como um fenômeno exclusivamente europeu. Continua sendo o engajamento político na crítica ao colonialismo e, por extensão, ao imperialismo, bem como ao discurso eurocêntrico. Fica claro que os rituais da Umbanda constituem uma rica herança cultural negra, indicando a produção decolonial de afirmação dos modos de vida, pensamentos e crenças cultivados nesse contexto, práticas que reforçam um projeto educacional antirracista a ser incluído nos programas escolares e acadêmicos (Borges & Baptista, 2020).

Para Rufino-Júnior (2018), a encruzilhada emerge como a potência que nos possibilita estripulias. Nesse sentido, o autor sugere a descolonização. Se ao longo da história do negro umbandista no Brasil nos deparamos com demandas sociais de opressão, é chegada a hora de vencer essas demandas. Dessa forma, se a colonialidade emerge como o carrego colonial que nos espreita, obsedia e desencanta, a descolonização ou decolonialidade emerge como as ações de desobsessão dessa má sorte.

Partimos do seguinte postulado: o sacerdócio feminino nas religiões afrodescendentes pode ser uma ação descolonizadora porque coloca a mulher como especialista no conhecimento dos ancestrais e é suscetível a um sacerdócio intercultural, uma prática que, a nosso ver, desafia as visões teológicas dos universos religiosos hegemônicos tradicionais e das epistemologias ocidentais, práticas que só se revelam por meio de epistemologias marginais (Borges, 2018).

Defendemos que a divulgação dessas culturas, por meio da exposição dos terreiros, constitui rituais e uma organização coletiva dos praticantes dessas religiões, modos de existência e resistência decolonial. Com Maldonado (2017), entendemos por decolonialidade a descentralização epistêmica, política e cultural dos modos de pensar e existir no mundo colonizado pelo modelo eurocêntrico, antropocêntrico e cristão; produção vibrante de um resgate das tradições dos povos indígenas e outros coletivos que forjaram seus saberes, modos de vida e visões de mundo (Jardim & Voss, 2021). [3]

Ainda segundo Jardim e Voss (2021), se a pós-colonialidade pressupõe um diálogo com o passado colonial na tentativa de anular os binários e compreender o processo de hibridização, também revela os entrelaçamentos de poder, os efeitos da colonialidade, ou a existência de um neocolonialismo. Assim, ao contrário dos pós-modernos, que carregam o passado nos ombros e olham para o futuro, os pós-colonialistas encaram o passado à medida que avançam em direção ao futuro, formas de resistência negra comprovadas desde o período colonial para fortalecer a manifestação da existência plural de comunidades negras que cultivam seu próprio modo de vida e reverenciam suas próprias crenças, rituais e simbolismos espirituais. Entre elas estão as manifestações umbandistas que protegem os valores ancestrais, propagados por populações negras escravas, mescladas a práticas xamânicas e espíritas que se renovam e vivem naqueles que as preservam e valorizam.

Nesse contexto, remetemos ao conceito de necropolítica de Mbembe (2014), para consideramos a colonização eurocêntrica, antropocêntrica e cristã como epistemicídios das culturas indígenas e negras. Assim, destacamos as conquistas das comunidades umbandistas como uma produção de patrimônio negro que abre intensas possibilidades éticas e estéticas para existir e resistir ao colonialismo. As práticas rituais forjadas no contexto analisado indicam a relevância das ações coletivas nas quais se realiza o potencial de construção cultural decolonial, princípios fundamentais para o estabelecimento de um projeto educacional antirracista baseado nas lutas e práticas cotidianas das comunidades afro-diaspórica e afro-brasileira (Jardim; Voos, 2021).

Os “epistemicídios”, termo cunhado por Boaventura de Sousa Santos, referem-se à destruição sistemática e violenta de formas de conhecimento que são marginalizadas ou subalternizadas pelo cânone eurocêntrico dominante. Segundo Santos, o conhecimento não é neutro e é moldado por estruturas de poder, resultando na exclusão e na supressão de outras formas de conhecimento.

Em seu livro Epistemologias do Sul, Santos (2010) argumenta que o eurocentrismo opera como uma forma de colonialismo cognitivo, que impõe um conjunto limitado de conhecimentos e práticas como universais. Isso perpetua as hierarquias de saber e poder, marginalizando e reprimindo outras formas de conhecimento produzidas por culturas não-ocidentais, povos indígenas, mulheres, pessoas negras e outras minorias.

Santos destaca os epistemicídios como um componente central do processo de colonialismo cognitivo, pois essas práticas não só negam outras formas de conhecimento, mas também as desvalorizam e as silenciam. Ele argumenta que essas formas de conhecimento excluídas não estão simplesmente ausentes ou incompletas, mas são ativamente apagadas e apagadas de circulação.

Uma das citações relevantes de Santos sobre este tema é a seguinte: “O modelo dominante de produção de conhecimento está associado a um processo de produção de não-conhecimento, através do qual uma matriz cultural é forçada a adaptar-se a uma matriz dominante, resultando em formas de conhecimento alternativas reprimidas, silenciadas e sujeitas a epistemicídio” (Santos, 2015, p. 21).

O autor demonstra como o processo de produção hegemônica de conhecimento exclui e suprime outras formas de conhecimento, levando a um “epistemicídio” que nega sua existência e desvaloriza sua importância. Portanto, o conceito de epistemicídios de Santos ressalta a necessidade de valorizar e resgatar essas formas de conhecimento marginalizadas, reconhecendo sua relevância epistemológica e política.

Muitas vozes se levantaram em defesa do descolonismo e da educação antirracista nos dias de hoje. Acadêmicos, pesquisadores ativistas, artistas envolvidos na desconstrução do pensamento eurocêntrico, antropocêntrico, cristão e colonial. A colonialidade que engendrava a dominação racial, a encarnação de seres sujeitos à condição de racialização, mas que imaginavam formas de se afastar da opressão, desde a escravidão no Brasil colonial. Devemos divulgar essa herança cultural negra, fortalecer o pensamento antirracista e decolonial e a ação política que ali se realiza.

 

2.3. Dialogando sobre juventudes umbandistas

 

A contemporaneidade nos levou a refletir sobre a reconstrução de vários conceitos. Um deles é o de juventude que, segundo Dayrell e Carrano (2014), é “ao mesmo tempo, uma condição social e um tipo de representação. De um lado, dado pelas transformações do indivíduo numa determinada faixa etária. De outro, há diferentes construções históricas e sociais relacionadas a esse tempo/ciclo da vida” (p. 111). Um conceito, portanto, atravessado de diferentes maneiras ao longo da história, e, talvez, além disso, reconstruído a partir de diferentes perspectivas, métodos, combinações e marcadores sociais e culturais dos quais destacamos: identidade, religiosidade, classe social, sexo, raça etc.

Marcada entre a faixa etária de 15 a 29 anos, a juventude, segundo o IBGE, é um contingente importante, significativo, com expressiva representatividade da população. Isso implica uma presença e participação expressiva nas questões sociais, culturais, educacionais e econômicas que estão no centro das discussões das políticas públicas no Brasil. Nessa linha de pensamento, Dayrell e Carrano (2014) acreditam que a categoria jovem faz parte de um processo de crescimento abrangente, que adquire contornos específicos no conjunto de experiências vividas pelos indivíduos em seu contexto social (Purificação & Catarino, 2022).

O discurso sobre os jovens, na atualidade, estabelece vínculos com diferentes campos sociais, e a juventude é vista como a etapa do ciclo vital em que culmina o processo de socialização, que prepara o indivíduo para a produção e reprodução da vida e da sociedade (Abramo, 2005). Assim, o conceito de juventude, também, é percebido como polissêmico, interdisciplinar e restrito à realidade sócio-histórico-cultural da experiência humana (Trancoso & Oliveira, 2016).

O conceito de juventude como produção social traz aspectos e características que pontuam os indivíduos jovens como inacabados, característica presente nos fenômenos humanos e sociais. Furiati (2020) considera que a juventude se constrói não pela passagem por etapas e eventos, mas pelas vivências nos meios sociais, com especial atenção para as relações ali estabelecidas. Apresenta como elemento de análise as políticas públicas de juventude que colaboram para estereotipia de uma imagem de juventude adultocêntrica, estigmatizada e/ou transgressora.

Colaborando, Rodrigues (2009) especifica que a mudança pela qual os jovens passam, e seu processo de crescimento, é marcada por rituais de base social que refletem a forma coletiva dessa passagem. Os papéis sociais surgem de modalidades subjetivas complexas e, sem saber quem são, os jovens buscam referências para o processo de construção identitária, bem como utilizam diferentes modelos. Para compensar as perdas em seu desenvolvimento natural, o jovem recebe novas aquisições que podem ser realistas ou simbólicas. Nesse processo, o meio social e as instituições socializadoras, da qual a escola é partícipe, legitimam essas imagens e, com isso, contribuem para construção de um conceito de juventude nessa perspectiva moderna (Rodrigues, 2009).

Num perspectiva sociológica, Dayrell (2007), assim como Peralva (1997), apresenta o conceito de juventude como uma representação e uma condição social, acrescentando a ele a ideia de condição juvenil colocam em discussão um conceito de juventude “permeado por culturas juvenis e nessa mistura com os fazedores de juventude, de natureza tanto interna quanto externa, determinada pelo [...] momento do ciclo da vida, no contexto de uma dimensão histórico-geracional”, e, incisivamente, pelo “[...] modo como tal condição é vivida a partir dos diversos recortes referentes às diferenças sociais -classe, gênero, etnia, etc.” (Dayrell, 2007, p. 2).

O caráter interno da condição juvenil diz respeito às formas como o sujeito se relaciona com a vida e com a sociedade, enquanto o caráter externo compreende as condições sociais organizadas em que a condição juvenil se desenvolve, processo em que resistência e existência são criadas.

Trancoso e Oliveira (2016), também, ressaltam a importância do processo identitário e da sobreposição geracional que se estabelece nas sociedades. Essa crescente evidência implica o debate sobre o conceito de juventude. Conscientes da complexidade que define a juventude, procuro aqui refletir, fundamentalmente, a produção do conceito voltada à juventude umbandista.

Para Canevacci (2005, p. 38-39), “não há nada de natural no modo de ser, sentir-se, classificar-se como ‘jovem’ [...] é uma autoconstrução relacional e híbrida”. Diante da assertiva, percebe-se que o processo de construção desse conceito é caracterizado por culturas fragmentadas, híbridas e transculturais, entre outras. Tudo isso colabora para dilatação do conceito de jovem virando do avesso as categorias que fixavam faixas etárias definidas e claras passagens geracionais. Nesse contexto, a pluralidade de identidades juvenis estabelece as diferenças e aí “não há nada de natural” encontrar um padrão de juventude que se encaixe na moldagem preestabelecida pelo social, pois “cada jovem, ou melhor, cada ser humano, cada indivíduo pode perceber sua própria condição de jovem como não terminada e inclusive como não-terminável” (Canevacci, 2005, p. 29).

Considerando as concepções de Ariès (1981, p. 279) de que a Modernidade inventou o que chamamos de identidades juvenis, busco, neste estudo, por meio da escola e do terreiro – espaços simbólicos e de expressiva comunicação juvenil, compreender como os jovens umbandistas se colocam em termos identitários e de pertencimento religioso. É comum, nesse processo, uma identificação pautada em signos e representações de sujeitos jovens, em que comportamentos, hábitos, forma de falar, de se vestir, gestos e outros passam a fazer parte do cotidiano deles (Coutinho, 2009).

Nesse diálogo teórico com os estudiosos aqui citados, complementados pelos apontamentos de Zago et al. (2018), entendo que os jovens são uma categoria socialmente produzida, em que o universal e o natural se entrecruzam, posto que o ciclo biológico do ser humano, e de grande parte da espécie natural, implica nascimento, crescimento e morte, o que social e historicamente impacta os modos em que a juventude é concebida e vivida.

Trancoso e Oliveira (2016), a partir de Batista (2008) e Enne (2010), consideram categorias e atributos essenciais e pertencentes à condição juvenil: o comportamento de alguém é algo que deve ser estabelecido em um nível psíquico necessário no momento vivido, no caso, pelo jovem. Em outras palavras, há uma fronteira cultural e histórica que coloca as pessoas, inclusive os jovens, em um estreito conjunto de possibilidades de postura (Batista, 2008). Na perspectiva de Enne (2010), os jovens são herdeiros da dinâmica que considera a “construção de estilos de vida como forma de marcação identitária”, o que permite maior flexibilidade e autonomia na “composição dos papéis sociais desempenhados no dia a dia” (p. 25).

2.4. Algumas conversas

 

“Desde que entrei na Umbanda fiz da oração uma rotina em minha vida. Pensar que antes, eu chegava ficar meses sem rezar um pai nosso, sem conversar com o Sagrado. Na Umbanda, aprendi a rezar o terço (ato que fazemos todos os dias antes das giras), aprendi a orar com os pretos velhos rezadores e com os caboclos. De forma, que as orações passaram ser uma constante em minha vida. Tem gente que acha que umbandista não ora, não reza. Está enganado que pensa dessa forma! O Umbandista ora e tem disciplina no orar” (S-25).

 

“Acho que o que me representa como umbandista é minha virtude. Chamo de virtude a forma autêntica de viver a religião, sem barganha, sem recuar, sem medo. Se gostam de mim como umbandista, perfeito! Se não gostam, só lamento! Não posso mudar a cabeça de ninguém, cada um pensa o que quer e como quer. Virtuosamente, tento ser boa e não devolver a eles o preconceito que eles me dão. Um dia, eles cansarão de ser preconceituosos, já eu, não me cansarei de ser virtuosa. Quando quiserem um abraço, um aperto de mão, estou pronta” (S-19).

 

“Medo...medo...medo. É assim que eu vivo a minha identidade umbandista. Não sei de onde vem tanta raiva e ódio. Mas me dá medo, quando vejo notícias que barracões de Umbanda foram incendiados e seus santos e entidades quebrados. Em meio a essa barbaria vem o medo. Evito, usar qualquer elemento que me identifique como umbandista na rua. Até minhas guias, uso escondido em meio as roupas. No entanto, trago em meu corpo – em um lugar discreto - tatuado a minha fé” (S-21).

 

“No dia a dia, vejo a Umbanda em tudo, principalmente na natureza. Saio às ruas, e vejo rostos diferentes – índio, branco e negro -, a marca do povo brasileiro. Chego no barracão e essas marcas estão lá representadas nos guias e entidades e nos símbolos da Umbanda. O dia a dia é um retrato das identidades umbandistas e é nesse contexto que eu estou, e é dessa forma que eu quero ser visto – como umbandista” (S-7).

 

Na Umbanda, e em outras religiões de matriz africana, o jovem é aquele ser complexo, híbrido, marcado pela cultura e pelas ações do cotidiano. Na Umbanda cresce a presença do público jovem. Nos barracões por onde ando, hoje temos mais jovens do que velhos. No trabalho desenvolvido por Santos (2015), juventude e iniciação estão intimamente ligadas, pois ser jovem é ser recém-iniciado, seja qual for sua faixa etária. O que importa é o tempo ou a idade de iniciação de cada um. Isso significa que uma pessoa pode ser adulta para a sociedade, mas jovem para a religião, dependendo do seu tempo de iniciação, ao mesmo tempo que um jovem iniciado há mais tempo pode e deve ensinar religião aos cronologicamente mais velhos.

No estudo de Santos (2015), ele descreve a dicotomia entre ser jovem dentro e fora do terreiro. Acostumamo-nos a uma sociedade onde a ideia de juventude está ligada ao consumo, à violência, à liberdade sem responsabilidade, à criatividade, à força, porque não nos acostumarmos, também, à ideia de que a juventude pode aprender e pode ensinar. Na Umbanda e no Candomblé, há reciprocidade nessa relação (ensinar e aprender).

Ainda, segundo Santos (2015): “a pessoa vive sua juventude da porta para fora e da porta para dentro vive sua condição de abiã, iaô, ekeji, egbomi, ogan, entre outras funções hierárquicas da religião. E O Ilê, a casa-terreiro, é o espaço da comunidade, independentemente da idade de cada indivíduo” (p. 115). A condição juvenil, tanto no Candomblé quanto na Umbanda, independe da iniciação, da hierarquia ou do Orixá, pois é vivida por pessoas dessa idade (14 a 29 anos). Não é possível separar o indivíduo em “caixinhas” e momentos. No próprio terreiro, embora seja uma comunidade-família, onde o mais velho (o iniciado) ensina a iniciação aos mais novos, é inegável a relação que existe entre as faixas etárias, principalmente no que se refere ao convite para conhecer a religião (Santos, 2015).

Por fim, quando penso no conceito de juventude na escola e no terreiro, me pergunto: não é hora de incorporar o currículo cultural ao currículo escolar? Se assim fizermos, não estaremos a contribuir para uma sociedade mais justa e inclusiva que analisa, questiona e reflete o cotidiano, valorizando-o e dando-lhe voz? É importante, no marco dos direitos humanos, repensar essas questões, possibilitando que os jovens praticantes de Umbanda que povoam as escolas aprendam de outra forma, por meio do confronto e desconstrução de saberes e/ou práticas que apelam a uma maior consciência e apreço de diferentes culturas, contribuindo para a formação de cidadãos mais atentos, responsáveis e críticos (Purificação; Catarino, 2022). Pois bem, os jovens da Umbanda são como a própria religião: novos, multiculturais que se comunicam com os acontecimentos cotidianos, curiosos e crescentes.

 

3. Metodologia

 

Em termos metodológicos, trata-se de uma pesquisa com abordagem qualitativa com inspiração etnográfica (André, 2005; Sarmento, 2003), a partir de recursos autobiográficos – na perspectiva de Philippe Lejeume – o que permitirá aos futuros leitores desta tese vislumbrar no texto expressões identitárias daquele que escreve, em seu valor de verdade. Nesse sentido, busco articular a dimensão autobiográfica e os ciclos de conversas com os jovens umbandistas como recursos de produção de dados. A análise é de cunho interpretativo aliada à análise de trajetória (Ricoeur, 1997), tendo a minha própria experiência um lugar protagonista, recorrendo às conversas e às memórias, a partir dos apontamentos de Ribeiro, Souza e Sampaio (2018) e Silva (2020). A pesquisa é desenvolvida, simultaneamente, em uma escola pública de Mineiros-Goiás e em dois barracões de Umbanda, respectivamente, em Mineiros e Novo Gama-Goiás. Como parte da experiência etnográfica, são feitas observações, registradas em fotos e em diário de campo.

 

4. Considerações

 

As conversas com jovens umbandistas ressaltam a importância das narrativas no esclarecimento das questões abordadas no processo de (re)construção da identidade umbandista, bem como a negociação dessas identidades, a partir das informações que circulam, reunindo perspectivas do passado e do presente com expectativas para o futuro. Para Hall (2003), as identidades são o resultado de inúmeros e infinitos processos de negociação que ocorrem em um contexto específico e sob condições particulares de emergência. Afirmar identidades, em espaços como a escola e o terreiro, não é fácil, uma vez que as identidades, muitas vezes, passam por convivências e confrontos que se traduzem em desafios cotidianos no encontro com o outro, outro que, sobretudo, me diz o que não sou (Lopes, 2006). O resultado é a impossibilidade de fixar, essencializar e cristalizar tanto as identidades quanto as diferenças (Hall, 2003). Dito isso, concordo com Vieira (2011) que a (re)construção da identidade pessoal e social é um processo complexo, intrínseco a cada indivíduo. Aplicada à perspectiva dos jovens umbandistas, o terreiro e a escola são contextos cotidianos que oferecem um espaço e um tempo de encontros, desencontros, interculturalidade, tensões sociais e culturais, sendo, sempre, uma oportunidade de complementaridade.

No terreiro, o jovem umbandista assume sua identidade pessoal como parte da identidade coletiva que ali se desenvolve, ou seja, projeta nesse espaço seu lugar de pertencimento, em que sua identidade pessoal se coloca em movimento em razão das relações que ele estabelece com os valores, as crenças, as normas com as quais e nas quais ele se reconhece, pois, “o reconhecer-se-em contribui para reconhecer-se por” (Ricoeur, 2014, p. 122), configurando o sentimento de lealdade, de pertencimento a um grupo como forma de garantir a “manutenção do si”.

 

5. Conclusão

 

Como forma de resistir aos preconceitos e aos estereótipos sociais acerca da Umbanda, o jovem umbandista tem, em suas narrativas, o caminho para fazer aparecer o tempo, o tempo da sua religiosidade, de seu lugar, não só no terreiro, mas também na escola. As narrativas permitem o aparecimento do tempo em que as ações do jovem umbandista ocorrem e podem ser narradas. A narrativa configura-se como a guardiã do tempo, das vozes que ecoam em busca de um lugar nos diferentes espaços sociais, a busca de relações de pertencimento, em que a religiosidade seja parte constitutiva e respeitada nos espaços fora do terreiro, posto que “a temporalidade não se deixa dizer no discurso direto de uma fenomenologia, mas requer a mediação do discurso indireto da narração” (Ricoeur, 2014, p. 411).

No processo de relação do jovem umbandista com a alteridade, ele encontra elementos que podem definir sua identidade, que, é algo processual e necessário à identificação do sujeito, à construção de seu lugar de pertencimento nas diversas esferas sociais, seu modo de presença que regula as suas relações com o outro e consigo. Os jovens umbandistas formam crenças e impressões durante sua jornada religiosa, alguns já passaram por diversas religiões e adquiriram conhecimentos e valores. Essa marcha em direção ao sagrado, ou em busca dele, abre um campo de múltiplas possibilidades a esses jovens, em que seus discursos e suas histórias não podem ser reduzidos a um único julgamento de verdade. Nesse contexto, os jovens umbandistas têm múltiplas formas de compreender o significado do sagrado. O corpo umbandista ganha novas formas, reproduz-se em outro corpo, busca sua própria identidade “no” outro, um corpo que fala, que atua como lugar de comunicação (Pross, 1971).

No que diz respeito à relação do jovem umbandista com o sagrado, esse processo se marca de diferentes formas em sua constituição, ou seja, o sagrado se torna parte constitutiva do jovem umbandista, no corpo, nas vestimentas, nos símbolos, nos ritos, nas ações, no ser em si, nas lutas sociais, no seu modo de presença no mundo. Outro movimento que marca o sagrado no corpo dos jovens umbandistas é o diálogo entre religião e cultura que cruza as ideias religiosas da fé católica e a subjetividade dos negros e índios no Brasil. Os corpos e suas manifestações do sagrado apontam para a interseção com o sagrado de diversas formas: dos signos linguísticos aos rituais.

 

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[1] Refiro-me a religiões hierarquicamente institucionalizadas, aquelas que estão sistematizadas na estrutura social do país, desde os primórdios, como religião oficial, como religião da maioria, como grupo religioso mais emergente, entre as quais cito: a igreja católica seguida por 50% dos brasileiros e os evangélicos que totalizam 31%, nos quais incluo os pentecostais e os neopentecostais, segundo censo de 2010.

[2] Compreendido como código e símbolo cultural que se expandiu no mundo por meio da diáspora, ou seja, através da migração forçada dos povos africanos (Santos & Silva, 2021).

[3] Patrimônio negro umbandista dos pampas: decolonialidade e educação antirracista.